Era um sábado, 13 de Abril de 1996. Esperava Valdir com uma arma no bolso. A arma fazia volume e eu sentia o peso de uma tonelada no meu bolso me puxando pra baixo.
Valdir era tudo que eu não era. Ele era especial. Eu não o conhecia bem, mas ele morava no meu bairro e sempre ouvia falar. Enquanto todos o ouviam e falam sobre ele eu quase tinha que gritar pra voz sair. Enquanto os times disputavam sua presença na pelada eu era o último a ser escolhido. Ele não tirava notas altas no colégio mas não era reprovado como eu. Fazia uns poemas, alguns raps, parecia ter um futuro na vida enquanto eu não sabia o nome do meu pai. Valdir era bom em quase tudo, e eu era um ninguém. Senti como se isso fosse culpa dele, como se ele tivesse me roubado a sorte ao nascer. Algum evento simbólico, macumba, mal olhado. Só não era possível que o sol brilhasse para ele e em cima de mim chovesse granizo o tempo inteiro.
Mas o golpe de misericórdia foi quando ouvi atrás do colégio as pessoas comentando:
- Na festa semana passada cara, o Valdir pegou a Thereza de jeito atrás dos prédios do conjunto. Com certeza comeu.
Thereza era minha melhor amiga, a menina mais linda do bairro, amiga da minha mãe, a pessoa com quem não precisa ser algo além de mim. Nutri uma paixão por ela desde os 12. Mas enquanto nunca tive coragem, Valdir me tomou a única esperança de vida, meu raio de sol em meio a chuva triste. A dor aumentou quando percebi que há algumas semanas Thereza andava distante, e eu estive ocupado demais remoendo meu ódio pra perceber.
Minha garganta fez um nó tão grande que parei de respirar. E na falta de oxigenação do cérebro subi a favela em busca de uma arma para acabar com meus problemas. As lágrimas melaram meu chinelo sujo da terra das ruas mal asfaltadas. Quase morri três vezes atropelado por motos e não vi como eram lindas as pipas no céu de final de tarde. Consegui a arma e desci com a coragem que nunca senti na vida para fazer algo bom. O melhor que eu podia fazer por mim era atirar.
Estava com tanto ódio transformado em energia e coragem que nem precisei de cocaína. Meu próprio sangue me drogava. Não queria só matar pra acabar com meu problema de uma vez, era preciso desabafar, jogar toda culpa em único motivo e liquidá-lo pra que eu pudesse começar do zero, me declarar pra Thereza, aprender uma profissão, procurar meu pai pra fazer o mesmo.
Procurar meu pai pra fazer o mesmo.
Foi quando a arma estava apontada pra cabeça de Valdir estirado no chão que essas palavras ressoaram na minha cabeça como um golpe e a droga da ira passou. Sentei no chão com os braços apoiados na perna e enxerguei que se fosse pra fazer o mesmo que meu pai essa arma deveria estar apontada para minha cabeça. Apontei por um tempo pra me certificar que era eu o problema a ser extinto. Valdir não era o meu pai. Era um pobre homem com sorte na vida, que não tinha culpa da minha desgraça. Nem eu podia ser.
Levantei Valdir, peguei minhas coisas em casa e fui recomeçar em outro lugar, em busca de outra sorte pra chamar de minha.