Eu estava determinado a conseguir aquele estágio.
Entrei no prédio comercial e chique da zona sul, contrastando com minhas roupas simples e batidas da periferia. Eu queria muito aquele estágio, então tentava desesperadamente esquecer o abismo social de todo dia, naquele prédio chique e comercial, com espelhos mais valiosos que minha vida. Minha mente se dividia em duas: uma tentava se lembrar das dicas de entrevista de emprego, a outra tentava se lembrar do que era ser livre, frente a ameaça de me perder para sempre em um emprego tedioso e mau remunerado para pagar contas e me arrastar até a morte. Era a vida adulta chegando devagar e rompendo minhas crenças. Me identifico; carteira surrada de trabalho. Entro no elevador.
Saio do elevador. Era um andar grande e dividido verticalmente. De um lado, salas de um órgão público, o outro era corrido, e no final havia a sala de espera. Sento em um sofá imenso, preto, de couro. Desapareço nele e me sinto pequeno. Meus olhos rapidamente encontram a janela. Montanhas e prédios são do que Belo Horizonte é formada. E de gente gay e fumante também.
Enquanto aguardava em um misto de excitação e tédio, uma figura saiu de dentro da sala onde seria meu provável covil. Era um homem, por volta dos 40. Cabelo desgrenhado, já ralo e meio careca, camisa social branca com listras vermelhas, suspensórios, calça social bege, sapatênis. É possível que eu esteja inventando um pouco seu traje, mas pelas conversas que ouvi pude saber que ele era um chefe, e sua relação jovial com os subordinados era digno de um personagem. Um personagem que minha criatividade se mataria para escrever.
Eu estava determinado a conseguir aquele estágio.
Mas a partir daquele momento minha mente estava dominada pela imaginação. Como viveria aquele ser tão distinto, em um órgão público lotado de pessoas que sabiam muito bem a idade a qual pertenciam? Ele brincava, falava alto. As pessoas ao seu redor pareciam ter um misto de admiração e pena, apreciação pela coragem e vergonha alheia, tudo ao mesmo tempo. O fato de ser superior hierárquico poderia contar muito também. Talvez fosse tudo o que ele tinha. Queria escrever um episódio sobre aquilo. Como se chamaria? O cara do trabalho? O louco do governo? Ele frequentava bares? Era gay e fumante? Tinha uma vida dupla? Se ele fosse meu chefe, conseguiria lidar com ele sem ficar analisando sua vida como um esquisitão perturbado pela criatividade não explorada?
A entrevista começa.
Era uma mulher de 30 e poucos anos. Cansada. Talvez casada, com filhos irritantes e um marido brocha. A questão é que tudo que eu conseguia pensar eram em personagens. Ela quase não pergunta da minha vida pessoal e acadêmica. Fala por horas sobre as atribuições de um trabalho que muito provavelmente eu não iria conseguir. Olho pela janela, Belo Horizonte se exibe para mim como uma puta barata. Uma outra candidata entra. Vinte e poucos anos, gatinha da zona sul bem criada pelos pais. Veio de carro, cheirosa e pontual. Vim de ônibus, andei por cinco quarteirões, meu pai me ameaçou dar uma facada há duas semanas do meu aniversário de 18 anos. Penso muito em um cigarro, ela me chama para a prova prática. Me põe em frente ao computador e pede que eu redija um texto sobre algo que eu não pesquisei direito no dia anterior. Eu estava determinado.
O cara excêntrico desvia minha atenção. As mulheres ao redor dele também. Toda a cena estava armada, a iluminação certa, o roteiro perfeito, os diálogos e situações de dar inveja em qualquer Woody Allen da vida. Era minha vida ficando ruim por mais algum tempo. Escrevo qualquer coisa. Saio jurando que vou escrever uma série.
Mas quando abandono o prédio comercial, chique e bem refrigerado e avanço pelo centro, minha mente descreve um outro personagem, preso em uma história que nunca teve coragem de interpretar. Sempre olhando pela janela, no ônibus lotado, imaginando a vida alheia, vivendo sensações por trás dos olhos. Com pouca ou nenhuma vontade de crescer. Volto para o meu bairro mal construído, as calçadas destruídas, as ocupações abandonadas, o concreto seco, a fumaça densa, muita arma, muita droga, pouco dinheiro e pouco perdão.
É, eu realmente estava determinado a conseguir aquele estágio.
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